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Notícias - COMO A UNIDADE DE CONFORTO DO HG AUXILIA PACIENTES TERMINAIS EM CAXIAS


06/07/2016

Ivanete Marzzaro

 

Segunda-feira, 27 de junho de 2016. Fazia frio na tarde de inverno, embora o sol brilhasse lá fora. No quinto andar do Hospital Geral (HG), em Caxias do Sul, no leito A da Unidade de onforto Sintomático, o jardineiro Arcênio Tomazzi Toretti, 63 anos, contemplava as margaridas que decoravam a parede à sua frente. Pela janela, podia ver a copa das árvores e os galhos de parreiras que ilustravam o biombo que o separava do leito B, onde outra paciente mergulhava em seus devaneios.

Inquieto, seu Arcênio tinha pressa em falar tudo o que ainda queria fazer em vida. Parecia não imaginar (ou sim) que seriam os últimos dias. O câncer detectado no estômago o consumia vagarosamente, sem piedade.

Catarinense, ele chegou a Caxias em 1970. Trabalhou como matrizeiro, mas seu sonho sempre foi ser jardineiro. Fez um curso na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e ingressou no ramo das flores em uma empresa de paisagismo de Caxias.

— Amo as margaridas — disse, referindo-se às flores que ilustravam as paredes.

O quarto com dois leitos, decorados com paisagens que levam ao infinito, tem uma função específica: fazer com que os pacientes com câncer irreversível tenham uma morte digna, com a família e os amigos por perto. Neste espaço, são tratados somente com medicamentos paliativos, sem tubos, ou sondas. A morfina é aplicada suavemente, para amortecer a dor. Desde a inauguração, em setembro de 2015, mais de 150 pacientes fizeram sua passagem na unidade do HG. E tem fila de espera.

— Muitas vezes é difícil escolher quem pode ou não ter uma morte digna, com os familiares por perto — diz a oncologista Rita Costamilan.

A prática dos cuidados paliativos surgiu nos anos 60 do século passado, com a ideia que cuidar é mais importante do que curar. A unidade do HG tem esse objetivo.

Só quem acompanhou um paciente com câncer sabe como essa doença pode ser cruel em seu estágio terminal. Ninguém gosta de falar sobre o assunto. Muitos evitam até de pronunciar a palavra cuja origem latina quer dizer "caranguejo", provavelmente por causa da semelhança entre as pernas do crustáceo e os tentáculos do tumor. Em 30 minutos de conversa, o falante jardineiro não pronunciou a palavra câncer.

O câncer é um dos males que mais mata. Em 2016, o Inca estima diagnosticar 600 mil novos casos. Não é à toa que a maioria o define como uma sentença de morte. Ter ou não a doença é uma loteria.

O câncer é o inimigo número 1 da medicina. Houve avanços importantes nos últimos 10 anos, e os índices de mortalidade, apesar de ainda serem altos, reduziram devido aos novos tratamentos. Não será abordado este assunto, pois o protagonista desta história é um jardineiro em estado terminal que ainda acredita em um milagre que o faça voltar a lidar com as flores.

É necessário ressaltar, no entanto, que encarar um inimigo deste porte é uma missão muito mais espinhosa do que a enfrentada pelos cientistas que trabalham para descobrir um remédio que o derrube.

"Não tenho medo da morte"

 A enfermeira Camila Vannini, 28 anos, trabalha há um ano e meio com pacientes terminais. É preciso coragem e frieza para exercer a função. Coragem ela tem, frieza, nem tanto.

— É uma lição de vida diária. Choro com eles, ao lado do leito — conta.

Alimentar-se, por exemplo. Para as pessoas normais, um prazer. Para quem precisa de uma sonda, uma tortura. Seu Arcênio passou mais de um mês no HG, sem se alimentar. Emagreceu 15 quilos. No dia da reportagem pesava menos de 50 quilos. Viveu 30 dias à base de soroterapia. Mostrava seus braços flácidos, sem músculos, e declarava:

— Não tenho medo da morte. Vou vencê-la. Tenho muito o que fazer por aqui. Quero minha saúde de volta.

Seu Arcênio não teve uma vida exemplar. Errou muito, como tantos. Casou cedo, teve seis filhos e oitos netos. Há oito anos se separou de sua companheira, Edna, com quem viveu durante 16 anos. Voltou a casar. Não durou muito. A filha Kelly, 35 anos, não abriu mão de estar ao lado do pai sempre que possível.

— Cuidamos dele dia e noite. Sabemos que o câncer voltou mais agressivo e que não terá chances. Faremos de tudo para confortá-lo.

 

Reunir a família, depois que a relação foi estremecida pela separação do casal, era um dos sonhos de seu Arcênio:

— Quero ver meus netos crescerem e meus filhos unidos.

Com o empurrão de dona Edna, ele conseguiu. Todos passaram pelo "quarto colorido", inclusive dona Edna, que deixou a mágoa de lado e não abriu mão de estar por perto sempre que necessário. O perdão foi recíproco à beira do leito numa tarde de domingo, uma semana antes de sua morte.

Foi com esse alento que seu Arcênio viveu mais seis dias no "quarto colorido". Quando lhe perguntei se teria um último pedido, ele respondeu: "quero um abraço". No aperto contra o peito senti o coração acelerar e uma lágrima rolou em ambas as faces. Às 15h25min de sábado, dia 2 de julho, a morte o venceu. Partiu serenamente, perto da família.

 

"O exercício da vida feliz está nas coisas simples, singelas", diz oncologista André Reiriz

O coordenador médico da Unacon, oncologista e diretor de Ensino do HG, André Reiriz, foi o idealizador da Unidade de Conforto Sintomático. Ele queria que os pacientes terminais tivessem uma morte digna, confortável, sem tubos. Ele conseguiu. Os últimos dias de vida do jardineiro Arcênio foram admirando as margaridas que ilustravam as paredes do quarto. Partiu sem sofrimento, sem tubos, com a família ao lado do leito.

Pioneiro: Quando o senhor decide mandar o paciente para o "quarto decorado"?
André Reiriz: A
unidade de conforto sintomático é voltada para todo paciente com câncer, cuja condição clínica encontra-se debilitada pela doença, não permitindo tratamento contra a doença. No espaço, é tratado com medidas exclusivas de conforto voltadas especialmente para dor, falta de ar e todos os sintomas que importunem, preservando serenidade e autonomia.

Qual a notícia mais difícil de dar: comunicar ao paciente que está com câncer ou avisá-lo (a ele e familiares) que não tem mais o que fazer para reverter a doença?
Comunicar o diagnóstico inicial é mais difícil, considerando o inesperado e o desconhecimento a respeito do câncer, seu tratamento e prognóstico. É absolutamente inadequado dizer para um paciente e seus familiares que nada temos a fazer, pois, de fato o que ocorre é que não temos mais como vencer a doença, porém existe uma série de medidas importantes que evitam sofrimento e confortam o final da vida, sempre há o que fazer.

 

Em seus 20 anos de profissão, qual foi a situação mais difícil que vivenciou?
E qual a mais recompensadora?

As difíceis são quando o final da vida não é bem aceito por familiares, normalmente quando estes não acompanharam de forma próxima a trajetória do paciente e nosso processo contínuo de comunicação, criando expectativas irreais, buscando terapias alternativas sem qualquer respaldo científico e dessa forma amplificando a culpa e sofrimento. A recompensa vem na percepção de que confortar o final da vida foi capaz de gerar os maiores reconhecimentos que obtive em minha carreira, deixando claro a importância do profissional nesse período para não somente fazer algo, mas especialmente fazer a diferença na entrega do conforto.

Algum paciente já pediu para acabar com sua agonia?
Sim, porém sabemos que essa atitude não tem respaldo bioético em nosso país, assim deixamos claro ao paciente de que todas as medidas tomadas serão utilizadas para controlar sintomas, em especial dor, possibilitando que o sofrimento momentâneo seja amenizado, permitindo que ele viva com qualidade até o dia da morte, porém esse momento não será definido pelo médico ou equipe, esse tempo é de cada paciente. Desse modo o paciente percebe que o sofrimento pode não lhe acompanhar até o final.
 

Qual a mensagem que você deixa para quem está vivenciando esta situação?
Falo não somente aos que vivem a doença. Não esperemos as dificuldades para revisitarmos nossos hábitos e atitudes. Sejamos capazes de reinicializar nossa máquina com mais frequência e possamos perceber que nossas estimativas materiais são exageradas. Não é clichê, o exercício da vida feliz está no simples, basta que estejamos atentos. Portanto viver está disponível mesmo quando o final se aproxima.

Fotos: Felipe Nyland



Jornal Pioneiro
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